sexta-feira, 3 de fevereiro de 2017

Multiculturalismo em Debate


            Conforme Charles Taylor, na filosofia política, o multiculturalismo pode ser tomado como uma extensão da política de igual dignidade surgida no Ocidente a partir do pensamento liberal. O respeito igual que todo o indivíduo merece está fundamentado sobre uma base universal de justificação que atribui a todos os seres humanos, indiscriminadamente, características homogêneas que tornam os indivíduos intrinsecamente dignos de respeito. Em termos políticos, esse princípio moral se traduz em uma gama idêntica de direitos e deveres que todos possuem igualmente dentro do quadro jurídico de um Estado-nação democrático. Todavia, o multiculturalismo é um “braço” da política liberal que, de certo modo, se revolta contra o corpo de ideias que está na sua origem.  
            Sem dúvida, o desenvolvimento do pensamento liberal que exalta a liberdade e a dignidade do indivíduo foi um ganho inestimável para a humanidade. No entanto, a objeção multicultural direcionada a uma das bases do pensamento liberal (a igualdade) procura apontar a limitação quanto à aplicação deste princípio. Segundo um crítico do multiculturalismo, Brian Barry, tal objeção pode ser apresentada na seguinte formulação: “a mesma lei pode ter impactos diferentes sobre diferentes pessoas em virtude de suas crenças religiosas ou práticas culturais, portanto, a reivindicação liberal de que o igual tratamento pode ser garantido através da aplicação de um sistema uniforme de leis é falso”. Tal declaração remete exatamente à extensão realizada pelo multiculturalismo em relação ao pensamento liberal.
               Isso ocorre porque a luta por reconhecimento e direitos que antes estava mais ligada ao nível pessoal do indivíduo passou, sobretudo no decorrer do século XX, a ser compreendido também através da categoria de grupo. Como nos diz Appiah, “a identidade individual de cada pessoa é vista como tendo duas dimensões principais”, a dimensão pessoal e a dimensão coletiva. A primeira dessas dimensões remete aos traços psicológicos pelos quais nos distinguimos dentro de nosso grupo (inteligência, perspicácia, charme, etc.), já a segunda, diz respeito a uma distinção sociológica, caracterizada pelos traços compartilhados (comportamento, crenças, etc.), os quais fornecem uma base comum para a construção da identidade individual no interior de um grupo.            
            Assim, povos nativos, minorias nacionais (indígenas norte-americanos ou québécois no Canadá) e outros grupos minoritários, em nome de suas identidades coletivas, passam a reivindicar não só o reconhecimento e respeito, mas também direitos especiais para o grupo, uma vez que seus costumes e crenças não se coadunam a muitos dos costumes e das crenças mantidas por uma maioria nacional. Nesse sentido, a objeção multicultural ao princípio liberal da igualdade procura reformular a própria noção de igual dignidade. A categoria da “diferença” entra numa espécie de choque dialético com a “igualdade”, travando um embate que, vamos aqui supor, é necessário para a emergência de um modelo político democraticamente mais adequado, dado o contexto de uma sociedade constituída por uma diversidade cultural. Precisamos de leis mais justas, nas quais grupos minoritários não sofram consequências negativas devido à aplicação jurídica de princípios que, na sede por abrangência, acabem fornecendo diretrizes etnocêntricas e homogeneizadoras que desrespeitam as diferenças e minimizam ou desconsideram o papel que as identidades coletivas possuem na vida dos integrantes destes grupos.
            Obviamente, não existem soluções simples no terreno da política. Uma crítica recorrente se refere ao aspecto comunitário do multiculturalismo. Uma vez que as reivindicações não falam apenas de tolerância ou respeito, mas também de concessões políticas na forma de direitos que possam garantir a sobrevivência das práticas e crenças características destes grupos, fica a questão: como atender a tais reivindicações no caso de grupos cujas práticas e costumes potencialmente (ou efetivamente) acarretam a discriminação ou a supressão das liberdades individuais no interior destes grupos? Através de uma apreciação comunitária dos fatos, somos levados a admitir que os diversos aspectos de nossa cultura de origem fornecem os meios necessários para a formação de um “eu” consciente. Sem os elementos culturais na forma de uma linguagem com a qual trocamos experiências com os outros, não é possível edificarmos um self genuinamente humano, capaz de avaliações morais e de relações significativas com o mundo a nossa volta. No entanto, existem grupos cujas tradições possuem traços patriarcais fortemente enraizados, os quais levam os integrantes homens a compreender depreciativamente o papel das mulheres dentro do grupo. Em muitas tradições, as mulheres sofrem desde restrições à possibilidade de deliberar sobre algo dentro do grupo, até agressões físicas e mutilações que são “culturalmente” aceitas pela maioria dos membros destes grupos. Homossexuais e ateus também podem sofrer punições de uma maioria religiosa devido às suas orientações e preferências pessoais.
             A discriminação intra-grupo é um problema porque as práticas discriminatórias destes grupos entram em conflito com alguns dos valores essenciais das democracias ocidentais que versam acerca dos direitos individuais e dos direitos humanos universais. Não existe uma solução fácil porque não podemos simplesmente nos valer dos princípios que, dentro da nossa sociedade, são vistos como “absolutamente” coerentes para assim rejeitar as práticas de algumas culturas, taxando-as de primitivas ou irracionais. O âmbito da “igualdade” que acreditamos ser desejável universalmente, em muitos casos, não pode ser totalmente apreciado (compreendido) por aqueles indivíduos que, ao longo de suas vidas, não partilharam de experiências sociais nas quais tal princípio vigorou. 
Desse modo, creio que o diálogo intercultural e uma educação multicultural podem fornecer meios para melhorar as situações mais complicadas. Uma sociedade plural e diversificada culturalmente não pode abdicar de projetos educacionais e de interação social que permitam uma maior aproximação entre grupos diferenciados, valorizando a troca de experiências e a possibilidade de ampliação de nosso espectro moral/conceitual, ou, como prefere Taylor, do alargamento de nossos “horizontes de significado”.     
    Atualmente presenciamos o ressurgimento de ideias politicamente obscuras, as quais ameaçam os valores democráticos não só de nosso país, mas também de outras nações do Ocidente. O espírito nacionalista e extremista que descaradamente ostenta o desprezo por minorias culturais e por outros grupos marginalizados vem ganhando popularidade e força (principalmente através da mídia e das redes sociais digitais), buscando ofuscar os valores de igualdade e liberdade em nossa sociedade. Diante disso, acredito que questões em torno do multiculturalismo e da convivência em uma sociedade diversificada precisam ganhar mais centralidade. Não é preciso que um grupo se feche em si mesmo para preservar suas tradições, tampouco é necessário que todos abracem um ideal monocultural sustentado pelo mercado capitalista. Mas precisamos de uma maior abertura à realidade do “outro” diferente, sem a arrogante superioridade daquele que se disponibiliza para a ascensão a um novo grau de moralidade, mas simplesmente aberto ao aprendizado intercultural. Sobre isso, sustento que é fundamentalmente por meio da convivência que podemos tanto aprender como ensinar formas de ver o mundo e de ver a nós mesmos, criando sempre novas dimensões de valoração.  
Referências
APPIAH, K. A. “Identity, Authenticity, Survival: multicultural societies and social reproduction” In: GUTMAN, Amy (Org.). Multiculturalism: examining the politics of recognition. Princeton: Princeton University Press, 1994, p. 151.
BARRY, B. Culture and Equality: An Egalitarian Critique of Multiculturalism, Cambridge, MA: Harvard, 2001, p. 34.

TAYLOR, C. “The politics of recognition” In: GUTMAN, Amy (Org.). Multiculturalism: examining the politics of recognition. Princeton: Princeton University Press, 1994.

sexta-feira, 20 de janeiro de 2017

GERMINA GERMINANDO

O objetivo deste texto, com o perdão da violência metafórica contra os coelhinhos, é acertar dois ou três com um golpe só. Os repetidos dias gastos – e pouco vividos – pensando e escrevendo exclusivamente sobre o tema da dissertação, tem me nauseado e impedido melhores ideias para compartilhar aqui no blog. Além disso, no mês de Novembro do peculiarmente desastroso 2016, Luana, Jean e eu fomos apresentar, na escola Sérgio Lopes, a primeira filha do GERMINA, nossa cartilha! Deveríamos ter compartilhado antes a experiência com o resto do grupo, mas estávamos sufocados de atividades que não terminaram enquanto os dias foram passando... Resolvi narrar e compartilhar, aqui, então, nossas idas à escola. Aí estão dois coelhos. O terceiro é a chance de poder escrever livremente sem precisar referenciar ninguém nem imaginar o fantasma da banca, pelas minhas costas, lendo o que escrevo com ar de desaprovação. Mas vamos à escola!

No dia 23 foi nosso primeiro encontro. A primeira surpresa foi a localização periférica da escola e a distância a ser vencida para chegar até ela, resolvida por um taxista que, enquanto dirigia, tirava várias dúvidas de aspectos jurídicos com nossa advogada Luana, da qual esteve perto de contratar serviços. Depois que descobrimos como entrar na escola, fomos muito bem recebidos, mas ficamos um pouco chocados quando percebemos que a sala de aula era, na verdade, um container. A bem da verdade, a turma, de oitavo ano, era pequena, apenas nove alunos. Mas com nove mesas e cadeiras para nove estudantes, mais três cadeiras pra os três sujeitos que requisitaram as duas últimas horas da manhã para falar de suas coisas e, ainda mais uma, para a diretora que decidiu acompanhar os trabalhos, ninguém há de duvidar que o limitado espaço do container ficou muito bem preenchido. Some-se a isso o calor de novembro, a porta fechada e a minúscula janela que assumiu sozinha o compromisso de ventilar o espaço. Qualquer lamentação possível, no entanto, termina aqui.

Nesse primeiro encontro, Luana e Jean apresentaram, mais propriamente, seus textos que, juntos, tratam do que é cidadania a partir dos direitos e das responsabilidades. Entregamos e lemos os textos, mas, sobretudo, conversamos e refletimos a partir das provocações que partiram de nós três e que voltaram para nós logo em seguida. Em pouco tempo, já não eram três sujeitos da universidade, nove estudantes do ensino básico e uma diretora em uma sala container: éramos um grupo. Descobrimos que em nosso grupo havia um vereador mirim, muito articulado e com leituras políticas surpreendentes. Como não poderia deixar de ser, conversamos sobre nosso caótico e fétido contexto político, não exatamente com estas palavras, claro. Mas falamos todos, também, um pouquinho de nossas vidas, de nossos sonhos, de nossos desassossegos. Descobrimos que há uma futura grande jogadora de futebol na turma, e também que há um menino que considera lasanha a melhor coisa da vida – com muitos méritos, há de se concordar...

Um dos meninos do grupo, no entanto, chamou em especial nossa atenção, e não foi por gostar de lasanha. Mais quieto do que os outros oito, menos disposto a rir de nossas piadas, recolhido em si mesmo lutou, apesar de não vencer o tempo todo, contra o sono que se evidenciava em seu ânimo e em sua feição. Mas havia algo mais. Uma tristeza, daquelas que não dá para esconder, um desânimo que é difícil de ser disfarçado com sorrisos forçados. Conversamos a respeito com a diretora, no final da aula, e ela contou-nos um pouco da história. Abandonos repetidos, extensa pobreza, ausência de um mínimo núcleo verdadeiramente familiar... vivências pesadas demais para uma criança suportar.

Voltamos caminhando da escola. Entusiasmados pelo encontro que superou positivamente nossas expectativas, mas comovidos com o triste e franzino garoto. Conversamos, durante os quarenta minutos de caminhada, sobre o quanto nossas perspectivas éticas, nossos modelos de interpretação filosófica, nossos estafes teóricos se mostram insuficientes perante a inabarcável e inescapável realidade do mundo, perante a imagem triste de um menino desolado, na dura lida de safar-se praticamente sozinho na vida que mal começou. Poderia dizer que foi uma lição de humildade que aprendemos, mas sei que foi mais que isso. Primeiro, porque não nos apresentamos com a intenção de ensinar algo. Segundo, sobretudo, porque o breve convívio com aquela gente humildemente grata, e com a história triste do menino franzino, despertou em nós qualquer coisa difícil de narrar. Um afeto comovido, certo senso comprometido de humanidade e a vontade de voltar, na semana seguinte, para a escola.

No dia 30 voltamos e havíamos acordado que eu falaria, prioritariamente, de meu texto sobre a felicidade. Um dia antes, no entanto, acontecerá a tragédia com o avião da Chapecoense. Tenho ligações afetivas com o clube e com a cidade, além de vários conhecidos que encontraram seu fim na irresponsabilidade mesquinha que vitimou derradeiramente aqueles 71. Estava me sentindo profundamente triste, e ao encontrar Luana seu semblante delatou que ela também carregava uma tristeza a mais naquele dia. Nossa sorte é que Jean, com sua típica serenidade e bom ânimo, ajudou a ser agradável o caminho até a escola.

Quando entramos na sala container, diferente da impressão claustrofóbica da semana anterior, eu me senti aconchegado. Contei que estava triste, expliquei por que, confessei que não me sentia à vontade para falar de felicidade e que achava até um pouco irônico tratar do tema justo naquele dia. Conversamos, todos, um pouco, sobre nossas tristezas, sobre como, pelo menos uma boa parte delas, são inevitáveis na vida. Então descobrimos que é justamente nos momentos mais tristes que se faz mais necessário pensar sobre e entender o que é felicidade, para não esquecer de reparar na beleza e na alegria das pequenas coisas que nos ligam amorosamente ao mundo.

Luana e Jean me ajudaram a ler e discutir com os pequenos e com a diretora o texto. Por fim, contamos a história de um sujeito que queria ser jogador de futebol, mas que teve que largar o esporte e acabou se transformando num dos maiores escritores e pensadores de seu tempo. Compartilhamos sua mensagem de que, não obstante os absurdos e as tragédias, há, na beleza do mundo e no milagre sem deus que é a vida, alguma coisa que nos faz sentir que é bom viver. No final, eles disseram que gostaram dos encontros e não tivemos dúvidas de que estavam sendo honestos, porque partilhamos do mesmo sentimento. Entre os abraços afetuosos tocou o sinal e a correria para o almoço foi inevitável.

Voltamos, Luana, Jean e eu, a pé novamente. O sol estava especialmente disposto naquele dia, o que me deixou com aspecto de um camarão gigante – melhor que a barata de Kafka, ao menos! Mas tudo estava muito bem. Conversamos pelos mesmos quarenta minutos de caminhada, e percebi que minha tristeza já não encontrava o mesmo sentido de que se gabava de manhã cedo, nem a de Luana. Escrevo em primeira pessoa e falo do que senti porque essa é a forma mais honesta que posso proceder. Mas tenho certeza de que para a Luana e para o Jean esses encontros foram igualmente importantes e felizes. Que nesse ano, o GERMINA, com outros rostos e perspectivas, possa continuar indo às escolas, levando as reflexões que fazemos até o lugar onde elas precisam chegar, e trazendo de volta o senso humilde e sereno que nos liga à realidade do mundo e das pessoas, por vezes triste, mas certamente inspiradora. 

sexta-feira, 13 de janeiro de 2017

A Sociedade dos Atores Mortos

Há alguns dias fui assistir ao filme Rogue One: uma História Star Wars no cinemaFiquei surpreso ao ver na telona o Comandante Tarkin, personagem que no primeiro filme da trilogia clássica é interpretado pelo ator inglês Peter Cushing. O novo filme da franquia Star Wars narra os eventos que são resumidos nos letreiros amarelos de Star Wars: Episódio IV – Uma Nova Esperança, portanto a presença da personagem de Cushing é justificável no enredo do longa. Porém o motivo de minha surpresa foi eu estar vendo o próprio Peter Cushing em cena. Um ator que faleceu há mais de vinte anos! Bem, não era exatamente ele, mas sua figura reconstruída pelo que há de mais moderno em termos de computação gráfica e a partir de um vasto banco de imagens da Lucasfilm. 
Atores que "estrelam" em filmes mesmo depois de mortos não é algo tão incomum na história do cinema. Algumas vezes, por infortúnio, os atores morrem antes de concluir as filmagens de uma produção. Nesses casos há a possibilidade do diretor aproveitar o trabalho que o ator deixou usando uma série de recursos como montagem, adaptação do roteiro, dublês e computação gráfica para finalizar o filme. N'O Mundo Imaginário de Dr. Parnassus, por exemplo, o roteiro foi modificado de modo que a personagem principal mudasse as feições do rosto durante a narrativa para que assim pudesse ser interpretado por Johnny Depp, Colin Farrell e Jude Law nas cenas que Heath Ledger não conseguiu filmar. Outro exemplo é o filme Gladiador no qual o ator Oliver Reed foi substituído por dublês e por efeitos de computação gráfica. O mesmo ocorreu com Paul Walker em Velozes e Furiosos 7. No entanto, todos esses são exemplos de filmes em que os atores começaram a produção, mas não puderam concluir. O caso de Rogue One é diferente. Apesar de Peter Cushing já ter interpretado o Comandante Tarkin anteriormente, ele foi escalado para fazer a personagem em um filme novo.



Este curioso acontecimento do mundo do cinema me lembrou um filme de 2013, O Congresso Futurista do diretor israelense Ari Folman. Neste filme a atriz Robin Wright, que interpreta a si mesma, tem seu corpo e suas emoções escaneadas e armazenadas em um computador. Dessa forma ela não precisa mais atuar fisicamente, pois um software passa a fazer isso por ela.  A partir daquele momento o estúdio de cinema com o qual ela assinou contrato torna-se dono de sua imagem para usá-la como bem entender. Este, aliás, é o motivo de maior hesitação de Robin em assinar o contrato, seu direito de escolha sendo eliminado. Ao contrário de Cushing, a Robin Wright do filme nunca tinha interpretado as personagens dos filmes que o estúdio produziu com sua versão computadorizada. Mas assim como ela, Peter Cushing não pôde escolher estar em Rogue One 
Do ponto de vista legal, os produtores que trouxeram Peter Cushing de volta às telonas estão apoiados no direito de propriedade de imagem. Mas o uso dessa tecnologia em Rogue One abriu espaço para uma complexa discussão ética e estética sobre o uso da imagem de atores que já se foram. Até que ponto a imagem de alguém pode pertencer a outros? É válido "trazer de volta" atores falecidos? Será que nós queremos ver isso em outros filmes 


sexta-feira, 6 de janeiro de 2017

A Pequena Sombra

Já era noite, quando o solitário morador da Rua das Flores tentava ultrapassar a porta da sua residência. Em suas mãos, a chave parecia um objeto de outro mundo; aos seus olhos, a fechadura parecia um obstáculo intransponível. A sua perseverança, no entanto, o levou a dominar aquela estranha tecnologia e, enfim, entrar em casa. Imediatamente, a mão pôs-se a alcançar o interruptor. Mesmo automático, esse movimento não foi preciso. O indicador tocou algumas vezes na parede antes de encontrar o seu destino. A luz não se acendeu. O ventilador de teto não ligou.

Fechou a porta sem chaveá-la. Era perseverante, mas não tanto assim, a ponto de reviver o mesmo desafio mais uma vez. Largou a chave na mesa e ficou parado, imobilizado pela circunstância embaraçosa. Lembrou-se que guardava velas na gaveta da escrivaninha. Começou a tatear as paredes. Os pés seguiram vacilantes à sua iniciativa, como se temessem cair em algum buraco no meio da sala. Após uma série de movimentos – provavelmente – jocosos, bateu-se contra a familiar quina da escrivaninha. Digo “provavelmente” porque estava escuro demais para se afirmar com certeza sobre a jocosidade daqueles movimentos. Enfim, agora estava perto da gaveta e era isso que importava. Tateou mais um pouco e abriu a gaveta. Com os olhos mais acostumados à escuridão, não demorou a encontrar a vela e o isqueiro.

Surpreendentemente, conseguiu acender a vela com facilidade e logo a pôs sobre a mesa. Sentou-se na cadeira diante da escrivaninha e ficou a observar o fogo enquanto regurgitava algumas lembranças recentes. Estava satisfeito com aquele dia. No trabalho, conversara com o chefe sobre a frequência de atrasos e a falta de produtividade do seu colega de repartição e sobre como isso era absurdo e desonesto. Mas afinal, por que diabos ele precisava conviver com aquela situação? Que esse parasita fosse parasitar em outra vizinhança! No fim das contas, o chefe foi implacável e tratou de encaminhar o infeliz para o olho da rua. Como essa sensação de dever cumprido o agradava. Parou de relembrar, porém sem desviar o olhar do fogo.

Sentiu-se inspirado e decidiu reviver um antigo hábito da juventude: escrever poeminhas. Retirou um retalho e um lápis da mesma gaveta que retirara a vela. Observou a chama inquieta e a maravilha das sombras projetadas ao seu redor. Seria um poeminha sobre aquela cena. Uma tentativa de sintetizar aquele momento em palavras. Estava enferrujado, mas a inspiração tem o seu efeito revigorante. Escreveu e riscou até ficar contente com o resultado. Leu em voz alta: No balanço da chama / a primeira dança / da pequena sombra. Fechou os olhos brevemente e sorriu sem mostrar os dentes. Ao abri-los, uma situação estranha aconteceu.

Uma pequena sombra em forma humana surgiu em pé sobre a superfície da escrivaninha. Antes que pudesse demonstrar o seu espanto, a sombra perguntou:
– Então, você está satisfeito com seu dia, não é?
Sem saber bem o porquê, respondeu à sombra como se falasse com outra pessoa qualquer.
– Sim, posso dizer que foi um dia bastante satisfatório. Finalmente, eu tive uma conversa com o meu chefe sobre o meu colega relapso e ele tomou medidas drásticas. O infeliz agora não trabalha mais lá.
A sombrinha falou de maneira provocativa:
– O mesmo colega que lhe emprestou aquele dinheiro dois anos atrás? Que está com o filho com aquela doença grave? Que o imóvel corre o risco de ser confiscado?
Ele respondeu sem jeito:
– Eu já paguei o empréstimo... Se ele sabia que estava numa situação delicada, ele deveria ter se comprometido mais com o trabalho. Regras são regras. Ele deveria ter chegado no horário e cumprido a quota de produção.
A interlocutora inconveniente continuou as suas provocações:
– E se o motivo dele não se comprometer seja exatamente a sua situação delicada? Ele se atrasava tanto assim? Dois anos atrás, não era você quem deixava a desejar no trabalho?

O morador da Rua das Flores queria dizer “Mas é diferente...”, entretanto não disse nada. Um gosto amargo ficou em sua boca, talvez porque esse fosse o sabor de suas palavras não ditas. Já não estava tão satisfeito com o seu dia. Talvez, amanhã fosse falar novamente com o chefe e admitir que se enganara, mas pensou que as coisas não eram tão simples assim. Ele poderia ficar sem emprego também. Não havia garantias. O medo era maior do que o desejo de redenção. Talvez, ele poderia ligar para o seu colega – ex-colega, ex-amigo –, dizer que sentia muito e oferecer um empréstimo. Decidiu que não ligar seria melhor para ambos. O pobre infeliz não aguentaria uma vergonha dessas. Animou-se com a sua sagacidade de pensamento, fechou os olhos e respirou fundo aliviado. Quando abriu os olhos, a pequena sombra já não estava mais lá.  

sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

A animalidade de nossa humanidade – parte 2


Falávamos anteriormente das críticas ao utilitarismo e da problemática centralidade dos conceitos de dor, prazer e bem-estar aí envolvidos. No entanto, a teoria mais kantiana em prol dos direitos dos animais, tal como advogada por Tom Regan, não se sai muito melhor e não evita algumas das mesmas objeções.
É verdade que a noção de “sujeito-de-uma-vida”, a qual atribui um valor inerente a qualquer criatura que experimente ser um tal sujeito, implica a consideração de um respeito (kantiano) como fim em si mesmo – ou ao menos o respeito de não ser tratado como mero meio, na esteira de uma atribuição de “direito”. Ser o “sujeito-de-uma-vida” é ter uma vida que importa para este sujeito independentemente de ela importar para qualquer outro. E isso por si só garante o direito a esta vida de não sofrer danos. Mas as condições suficientes elencadas por Regan para constituir este valor inerente a uma vida são ainda muito próximas das condições que conferem a nós a nossa própria humanidade: ter percepções sensíveis, crenças, desejos, motivos e memória. Mas até onde devemos ir, afinal, na questão do respeito e na atribuição dos direitos? Ultrapassado o limiar destas condições, já não temos deveres de respeito e de consideração? Ainda fica a pergunta: por que uns e não outros? Será este mesmo o critério decisivo? E se ele excluir algo que na verdade não deveria excluir – simplesmente porque são condições demasiadamente humanas? Além disso, persiste aqui ainda a autorização de um critério decisional por aproximação quando se trata da morte, por exemplo: a perda engendrada pela morte de um animal não é equivalente à perda engendrada pela morte de um ser humano. Regan o justifica em termos de oportunidades – o que o leva ao argumento contraintuitivo segundo o qual há mais dano na morte de um cão normal e saudável do que na morte de um ser humano em coma irreversível. O cão normal e saudável, ao viver sua vida, teria mais oportunidades de satisfação do que este ser humano – e isto parece correto, mas apenas de um ponto de vista pragmático, porque algo fica ainda por ser explicado no fato de que lamentamos enormemente mais a morte de um ser humano em coma irreversível do que a morte de um cão saudável (por mais que o possamos lamentar também, e por muito tempo). E não se trata somente de um lamento pela perda de um valor inerente à pessoa enquanto fim em si. Mas de um valor que apenas a vida humana possui, independentemente do quanto ainda poderia ou não fruir de suas oportunidades e capacidades.
Nenhuma destas abordagens dá conta do fato desta incomensurabilidade. Nenhuma explica realmente, como o diria Diamond, porque não nos comemos uns aos outros quando morremos.
Por outro lado, nenhuma destas abordagens consegue realmente ultrapassar a imposição de um critério de distinção que, em algum ponto, torna-se meramente arbitrário – ou, inclusive, e em seus próprios termos, especista. Apesar de todas as boas intenções, quando em condições iguais se trata de decidir quem deve viver, os seres humanos acabam sempre em melhor posição. E quando em condições desiguais se trata de decidir quem leva a sorte, é sempre a melhor cognição ou a melhor capacidade de fruição da própria vida.
Há algo de muito estranho em teorias que fazem a defesa dos animais nos termos de sua maior ou menor proximidade com os seres humanos.
Se a questão é o animal, talvez devêssemos parar de nos perguntar o que eles têm em comum conosco.
Mas se a questão é também a nossa própria animalidade, – reconhecendo-a e compartilhando-a com os outros animais – talvez devêssemos também aceitar sem acusação especista o fato de que não comemos nossos mortos, de que os enterramos de um certo jeito, de os lamentamos diferentemente, e de que sua vida é diferente aos nossos olhos simplesmente porque é humana. Algo assim não precisa – e não deve – engendrar um tratamento desumano dos outros animais. Uma conclusão não precisa – e não deve – seguir-se da outra: admitir a nossa diferença não significa admitir a nossa suposta superioridade nem qualquer requerimento de tratamento especial ou melhor ou mais utilitário.
As questões de uma “ética animal” talvez tenham alcançado um patamar de benefícios irrecusáveis, mas as suas reflexões parecem ainda depender de um ponto de vista preconceituoso ou tendencioso – ou, ao menos, menos aberto às verdadeiras complexidades aí envolvidas. Como sugere Raimond Gaita: falta ver as coisas como elas são. E para nós, humanos, elas não são sempre decidíveis por princípios sim e não, e não são sempre facilmente desligadas de nossa concepção de nós mesmos, seja em nossa animalidade seja em nossa humanidade.
Fica por fazer uma reflexão que explique porque nos é mais fácil falar em “acabar com a miséria” de um gato – quando não diríamos isso da mesma maneira de um ser humano em fase terminal numa cama de hospital. Que explique porque a morte de um gato, por dolorosa que seja, não perdura como perda da mesma maneira como ela perdura quando quem morre é um ser humano próximo. E porque faz sentido a cerimônia de adeus ao ser humano, mas não a mesma cerimônia de adeus a um cão – por mais que possamos querer que o seu corpo não seja tratado indignamente, e por mais que possamos querer respeitar a dignidade dos corpos da maioria dos seres vivos (é indigno que se atropele um animal silvestre dezenas e dezenas de vezes, como é indigno colocar animais de estimação no saco de lixo – indigno para eles e a vida que puderam ter tido). Mas por que isso é moralmente condenável, mas não criminalmente punível? Não é um tratamento igual no que se refere aos seres humanos.
Fica por fazer uma reflexão que explique, igualmente, nossas relações cotidianas com os outros animais. Não apenas a maneira como procedem bem ou mal os abatedouros, os circos, ou os rodeios, mas a maneira como convivemos com gatos, cachorros, vacas, galinhas e animais silvestres. Não nos cabe interferir na predação – como alegam alguns de maneira completamente irresponsável num meio acadêmico que não deveria se calar a este respeito, – mas com certeza nos cabe refletir sobre o modo como tratamos os animais que comemos e se os devemos mesmo comer. Mas o que isso significa, também, cotidianamente, para nós? O que são vacas e cachorros e gatos para nós? Podemos muitas vezes ser amigos desses animais – e de maneira muito intensa, muito verdadeira – mas os teríamos na mesma conta dos nossos amigos humanos?
As coisas tais como elas são, são muito mais nuançadas e complexas do que o supõem as teorias que pretendem regular nossas atitudes e comportamentos.
J.M. Coetzee, em seu livro Desonra, reflete sobre o modo como podemos nos comparar aos animais quando caímos em estado de desgraça. A filha de David Lurie, violentada e para sempre vulnerável em sua condição de mulher habitando sozinha uma fazenda da África do Sul, responde que cumpre agora começar tudo de novo, do zero. Mas do zero, e mais nada. Como um cão, diz Lurie. Sim, como um cão, diz Lucy, quando tudo o que resta de sua própria humanidade é esta animalidade nua, pronta para sofrer outras violências, e aberta a que tudo seja sempre repetido. Talvez isto tenhamos de fato em comum com os outros animais, o fato de que somos todos vulneráveis – por mais que a filosofia faça parecer diferente e não se ocupe quase nunca desse assunto; nós, como eles, somos vulneráveis e estamos sempre aí na eminência da queda, tanto da desgraça e da desonra, quanto da morte. Este pode ser o traço comum que não nos permita olhar no olho de um animal quando o matamos – ou quando um soldado se recusa a atirar num inimigo com as calças nas mãos. E  este pode então ser o traço comum que nos impeça justamente de fazer-lhes o mal. Mas nós podemos pensar a respeito, e eles não. E isso nos dá uma vantagem – e uma responsabilidade.
Enquanto as reflexões de uma “ética animal” não derem conta destas questões, estaremos ainda longe de explicar porque para tanta gente a analogia dos abatedouros com o holocausto é tão repugnante. E porque ainda assim, há os que continuam a insistir nela.

sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

A animalidade de nossa humanidade – parte 1



Desde 1975 a Libertação Animal tem advogado em nome daqueles que não falam a nossa língua filosófica dos direitos e dos deveres e das responsabilidades. São seres humanos preocupados com outros seres sencientes ou “sujeitos-de-uma-vida” – e preocupados com os seus próprios atos e com suas próprias atitudes relativamente à comunidade de vida como um todo (que de nós parece depender de maneira, cada vez mais, tragicamente) e à comunidade humana (que traça do alto os seus juízos de valor sobre a consciência e a consistência dos seus argumentos). Pontos de vista inevitavelmente humanos acerca do que seja a animalidade e humanidade desta relação que é também inevitável no compartilhamento de um mesmo mundo sem saída e sem beira. Ninguém pergunta aos animais eles mesmos, porque a sua limitação em nos responder e em defender a si mesmos em seus próprios nomes, já os exclui de qualquer outra consideração mais parcimoniosa. Falta-nos, neste caso, a humildade de um reconhecimento – quanto à nossa própria animalidade.
É claro que desde Jeremy Bentham retiramos da racionalidade o foco da distinção e do critério quanto à melhor maneira de se tratar os outros animais – “melhor” no sentido do mais justo e mais igualitário, porque desde então o que conta não é saber se eles podem pensar ou falar, mas se eles podem sofrer. O critério utilitarista engendra assim necessariamente que se coloque a todos os seres sencientes como passíveis de consideração moral: se o princípio requer a maior felicidade (leia-se “prazer”) possível para o maior número, se a correção de nossas ações é estabelecida com a realização máxima desse princípio, e se as outras criaturas participam conosco desse mesmo interesse, então nada justifica que se as faça sofrer em nosso próprio benefício. Por este critério, não somos mais do que eles – por mais que possamos expressar esta ideia em obras filosóficas, algo de que eles jamais serão capazes. A realização de obras filosóficas não conta para o cálculo dos benefícios da maximização da felicidade, a não ser quando surgem as bifurcações alternativas dilemáticas – numa casa pegando fogo, salvar o filósofo em detrimento de um cão é sempre preferível, mas não porque doa mais na pele do filósofo, senão porque o cão não sabe pensar nada de verdadeiramente profundo; um ser humano tem mais a perder em termos (do quê, realmente?) de conhecimento e oportunidades do que um cão; o que sempre nos coloca numa encruzilhada quanto aos mentalmente próximos de um cão, mas que ainda contam de alguma forma como humanos; não só o fato de que parece haver mais a ser salvo num filósofo do que num deficiente mental, mas no fato de que fica realmente difícil argumentar em prol do salvamento de um débil mental em detrimento de um cão sem cair no enquadramento da acusação especista.
É claro que não nos deparamos cotidianamente com casas em chamas e que os dilemas morais estão aí para se testar o alcance das teorias – e o quão longe se pode ir com os seus argumentos filosóficos (para o bem e para o mal) – e que o movimento da “libertação animal” fez mais pelas criaturas não-humanas em um quarto de século do que qualquer outra proposta anterior a seu favor. Ter posto de lado o critério da racionalidade e reconhecido uma semelhança de interesses entre humanos e não-humanos é um dos grandes méritos da corrente utilitarista.
Peter Singer é sem dúvida o mais influente filósofo contemporâneo cujo trabalho tem efetivamente “liberto” os outros animais de suas jaulas. Trata-se da noção de “igual consideração de interesses”: do fato de que devemos reconhecer nas criaturas a sua capacidade de sentir e de, portanto, ter interesses e, finalmente, ter direitos (muito embora Singer não possua uma teoria dos direitos e rejeite, como os demais utilitaristas clássicos antes dele, os “direitos naturais”). É claro que o interesse principal é aqui o “interesse em não sofrer” e em usufruir maximamente de sua “felicidade” (o que quer que isso signifique para cada um). Em nossas considerações morais cotidianas, isso implica numa atitude amplamente coerente que nos leva à necessidade do vegetarianismo, da abolição da instrumentalização animal para diversão e experimentação, entre outras medidas de implementação de bem-estar. Qualquer favorecimento ao benefício e felicidade humana incorre puramente, nesses casos, num preconceito baseado em “espécie” tanto quanto o racismo e o sexismo são preconceitos baseados em raça e gênero.
Se são grandes os ganhos para os outros animais – e se o seu bem-estar é assim de fato aumentado inclusive em termos legais, institucionais e culturais (o que mostra as vantagens pragmáticas do utilitarismo sobre outras teorias morais: nunca se falou tanto em bem-estar animal, nunca antes o vegetarianismo teve tamanha ênfase e endosso, nunca antes pareceu tão óbvio o horror do aprisionamento para fins de mero entretenimento) – há uma miríade de questões que fica por ser respondida pela teoria da igual consideração de interesses e pelo critério da senciência: desde a aparente contradição envolvida em medidas de conservação animal que são benéficas a longo prazo, e às vezes apenas para uma espécie como um todo, mas que engendram o sofrimento de alguns indivíduos (a começar pela castração ou tratamentos cirúrgicos), passando pelo fato de que mortes indolores não pareceriam neste caso intrinsecamente más ou moralmente condenáveis (nem mesmo para humanos inconscientes ou comatosos ou em situações semelhantes), ou pelos absurdos gerados na atribuição de valor moral igual a seres cognitivamente semelhantes mas que diferem em espécie, objeção à qual a teoria apenas acrescenta mais um problema ao fazer distinções de tratamento por “aproximação” ao humano; afinal, não me parece menos especista dizer que “seres humanos normais possuem capacidades que excedem largamente aquelas dos animais não-humanos, e algumas dessas capacidades são moralmente significativas em contextos particulares” – teríamos tanto mais a perder! (Singer 1999, p.87).*
Isto me parece apenas ainda um procedimento que tanta resolver as coisas em termos de semelhança enquanto autoriza diferenças de tratamento; dito de outro modo, ainda uma recomendação de respeito por “aproximação”, e não na consideração da própria diferença. Ou deveríamos respeitar a dignidade das mulheres porque elas de fato não diferem tanto assim dos homens? Nem os negros tanto assim dos brancos?

*Singer, P. In: Coetzee, J.M. The Lives of Animals. Gutman, A. (ed.). Princeton University Press, 1999, p.85-91.