A discussão sobre a relevância moral das narrativas literárias é
controversa. Há quem desencoraje em absoluto o ingresso da ética no
terreno da arte; há quem encoraje o interesse moral em algumas
obras literárias. Ambos têm boas razões para tal. Ainda somos
assombrados pelo fantasma do índex, que sussurra novos critérios
para as listas de livros proibidos. Faríamos bem em ouvi-lo com
cuidado. Ao mesmo tempo, somos motivados pelas nossas experiências
compartilhadas enquanto leitores que tropeçam em saliências morais ao
longo de seus passeios pela ficção. Não podemos ignorá-las tampouco.
Com cuidado, hesitantes, nós podemos endossar o fato de que literatura à sua maneira pode nos dizer algo sobre o modo como devemos viver. Mas por que
hesitar? Para que não reduzamos todas as obras literárias a
fábulas que sintetizam uma lição de vida. Uma parte considerável
dos textos literários oferece o seu melhor, justamente, ao
apresentar tramas de interesse humano em sua variedade e abertura.
Esses textos instigam reflexões morais a partir das incertezas que
geram em nós. Eles provocam os nossos juízos e as nossas concepções
mais sólidas ao oferecerem complexidade. Por exemplo: um personagem tão execrável
no início do livro torna-se mais compreensível ao conhecermos a profundidade da sua história; um personagem, antes
definido como bondoso, passa a ter as suas intenções questionadas ao longo do texto e isso põe em dúvida a sua definição. A partir da experiência de leitura, essas percepções trazidas por essas obras nos mostram a insuficiência e os riscos dos estereótipos. Podemos assumir, assim como Martha Nussbaum em Love's Knowledge (LK), que as
particularidades expressas nas narrativas literárias desconcertam
generalizações pomposas.
Sobre a relevância moral da literatura há uma questão importante a ser confrontada. Será que a literatura só é relevante moralmente na condição de
fonte para a extração de normas? É importante notarmos que uma
resposta positiva a essa questão não garante a contribuição sui
generis da literatura ou de qualquer narrativa artística; porque, uma vez extraídas as normas, todo o “resto” peculiar à literatura poderia ser abandonado. Esse “resto” corresponde à própria
forma artística e à estrutura narrativa que conecta os particulares.
Nussbaum em LK nos
ajuda a perceber que a forma não apenas reveste os conteúdos do
texto, mas também declara algo por si. Por exemplo, um texto escrito
de maneira detalhada diz que detalhes são importantes. Então, como
podemos defender a relevância moral sui generis
da literatura? Nussbaum opta pela defesa de uma concepção normativa
mais flexível, sensível à forma artística, a partir de uma matriz
aristotélica – o que não evita o seu quinhão de controvérsia.
Há um espaço para desconfianças razoáveis em torno da
consonância, atribuída por Nussbaum, entre o trabalho de grandes
novelistas – Henry James e Proust, especialmente – e a posição
ética de Aristóteles.
Para essa discussão sobre a literatura, pode ser interessante
importarmos uma perspicácia da tradição estética japonesa –
destacada por Donald Richie em A Tractate on Japanese Aesthetics.
Por esse viés oriental, somos instruídos a apreciar a arte por seus mistérios e suas sugestões mais do que pelas suas
respostas. Talvez, essa perspectiva poderia inspirar uma postura menos
abrasiva em relação à arte.
Talvez, a literatura não nos dê respostas definidas e definitivas para problemas morais, mas sugestões mais ou menos intensas que orientam a nossa percepção para tais questões. O que antes parecia uniforme passa a exibir nuances. Passamos a enxergar os mesmos desafios de uma maneira diferente, mais sensível e atenta às particularidades. Talvez seja isso o que torna a literatura moralmente relevante.
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