sexta-feira, 25 de novembro de 2016

Notas poéticas sobre autenticidade e método


            Ontem assisti ao espetáculo da burocracia e lentidão do nosso sistema de produção de conhecimento. Chego à conclusão de que nossos métodos são tão ineficazes que acabamos tendo de gastar interminável tempo discutindo como faremos para torná-los mais produtivos, gerando o máximo com o menor dispêndio possível. Mas é aí que sou atingido pela ideia de que certa fraqueza de espírito nos garante que jamais alcançaremos um ponto de repouso a partir do qual possamos exclamar, enfim, sossegados: “essa é a maneira certa de proceder, de hoje em diante é assim que farei”! Acho que não preciso falar da infantilidade dos imaginários de massa, criados à base de leite achocolatado e ininterruptos comerciais de televisão. Não. Porque perdemos nossos princípios fundamentais, as fontes que nos permitiam falar na língua dos preconceitos. O pensamento instável, fugidio e incapaz de se aprofundar em um ponto específico é tristemente preenchido de tédio – certa medida de melancolia que turva a visão e estanca os ouvidos, incapacitando-nos de enxergar as cores da vida e de sentir a morte dos sons. Isso tudo é verdade, eles disseram.
            Mas quem disse que não posso ser aquilo que sou? Por que almejar o repouso e a segurança de fronteiras e prescrições sempre renovadas pela fria rigidez de um ideal estático? (Eu disse que não iria pregar como um falso moralista, e assim tentarei fazer). Afinal, de que servem nossos modelos institucionalizados de avaliação? Para medir a sapiência contida nas cabeças de nossos memoráveis cidadãos? Servem para o desprezo de diferentes tipos de aprendizado, para a rejeição da variabilidade de estilos cognitivos em prol da perfeição mais útil possível. Somos compulsoriamente levados a nos comparar mutuamente mediante valores cuja unidade de medida é baseada naquilo que importa. Mas nem queremos saber disso, isto é, dos resultados reais dos cálculos subjacentes à nossa insaciável aspiração à grandeza.
            Em sua época, vendo o monopólio informativo da grande imprensa que se anunciava, Stuart Mill afirmou que o povo se assemelhava a um rente gramado muito bem aparado, no qual não se podia ver um único “fio” de grama acima dos demais. Mill pensava no prejuízo que essa homogeneidade insossa poderia ter sobre a riqueza de nossos debates intelectuais e o surgimento de novas ideias. Acho que ele estava correto. Esse gramado tem de ser constantemente aparado para que sua deformidade, sua estéril falta de harmonia e beleza, não cause horror ou, o que é pior, o sublime espanto. Com estas manias controladoras e perfeccionistas, acabamos negando nossa natural diversidade. Nossos futuros adultos moderados que o digam, pois são ocupados com os passatempos mais variados e imbecilizadores, e, ao fim, se seu pensamento irrequieto perturba excessivamente o seu meio, tacam-lhe alguma droga goela abaixo. Um remédio que fará muito bem para os nervos daqueles com quem ele convive.
            A questão paradoxal é precisamente essa: não podemos negar às pessoas que se realizem, que busquem uma forma autêntica para expressar sua singularidade existencial da maneira como elas pensam e querem fazer isso. Mas nos deparamos com ferramentas e materiais absurdamente pobres para esta empreitada. É aí então que clamamos pelos cânones norteadores do espírito humano: queremos ser normais! Não suportamos o ameaçador senso do ridículo nem em pensamento! Todavia, queremos ser únicos e evitar a todo custo ser apenas a reprodução particular de um padrão geral. O que queremos é atingir a origem de tudo isso, a morada do padrão dos padrões, e por fim, viver a concretização de um sonho que é somente nosso.
            Mas talvez nosso sistema não seja tão precário e sua aparente lentidão seja apenas o reflexo de seu complexo funcionamento. Burocracia inútil! Eu xingo. Mas pra que tanta preocupação se isso só serve para impedir que nos ocupemos com algo produtivo? A pergunta lembra a simplória frase que neste momento embala o espírito da política nacional: “não pense em crise, trabalhe”. Mas então era só isso? É só para pararmos de nos preocupar com picuinhas e mazelas cotidianas e colocar a mão na massa, para sair do atoleiro econômico? Eu seria muito ingênuo se analisando esse bordão, pensasse: “mas nem um marqueteiro este governo tem, senão não teriam usado uma frase impopular que sintetiza tão bem seu propósito de usar os cidadãos como instrumento para sair da crise, a custa de um bem tão humanamente valioso, o pensamento”. Seria ingênuo porque isso é exatamente o que eles sabem e querem, eles inflamam pelo recrudescimento, pela intensificação na aplicação dos padrões como fuga do problema dado. E a massa regorjeia: “essa conversa de que nos transformarão em máquinas ou zumbis ultraprodutivos com baixo teor de raciocínio crítico é a conversa dos esquerdistas preguiçosos, que jamais colocaram os pés no chão duma fábrica, não sabem o que é conquistar a verdadeira dignidade!”.

sexta-feira, 18 de novembro de 2016

Lentes feministas para ver a ética

O que significa olhar para a ética através das lentes do feminismo? O que o feminismo teria a acrescentar às teorias morais? Que contribuição as feministas poderiam ter a uma tradição tão consagrada?

Annie Kenney and Christabel Pankhurst,
sufragistas britânicas (1908)
Como sabemos, as mulheres foram, por muito tempo – e ainda são, ainda que em menor medida – excluídas de uma série de atividades, funções, instituições e lugares que eram – e muitos ainda o são – considerados masculinos. A atividade intelectual é uma delas; dentro das atividades intelectuais, temos a filosofia; dentro da filosofia, a ética. A ética é, portanto, uma área de estudos da qual as mulheres por muito tempo foram, se não impedidas de produzir e pensar, desacreditadas e desqualificadas.

Mesmo que as coisas tenham progredido de algum tempo pra cá, e que muitas mulheres tenham condições de estudar e escrever sobre ética e quaisquer outros temas que queiram, temos de levar em conta que as teorias morais clássicas da filosofia, aquelas que qualquer estudante de graduação precisa ler, foram construídas por homens. O problema, entretanto, é que a maioria desses homens vivia em uma sociedade que excluía e inferiorizava abertamente as mulheres. Talvez o pior problema seja que quase nenhum desses teóricos pensava diferente daqueles de sua época.

Ainda assim, poderíamos conservar as teorias que esses homens produziram exatamente porque elas não têm nada a ver com questões de gênero, não é mesmo?
Bom, é aqui que colocamos nossas lentes feministas para ver que as coisas não são tão simples assim de separar.
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Mary Wollstonecraft, autora de Reivindicação dos Direitos da Mulher (1792)
Para as pensadoras da ética feminista, por mais que grande parte das teorias canônicas da ética defenda a igualdade, a uniformidade e o julgamento desinteressado, elas reproduzem e alimentam a exclusão feminina através de uma visão limitada sobre o que pode ser a moralidade.
A ética feminista tenta mostrar que certos valores apregoados como morais poderiam ser fruto de concepções limitadas do que é masculino e do que é feminino, em que o que é feminino é sempre indigno de valor. Autoras da chamada “ética do cuidado”, ao perceber esse viés, buscaram trazer elementos tradicionalmente femininos para a discussão moral, mostrando que o cuidado, a maternidade e as emoções, por exemplo, podem ser bons pontos de partida para pensar a moralidade, ao mesmo tempo em que chamaram a atenção para o fato de que os princípios universais, a imparcialidade e o cálculo da utilidade talvez não o sejam.

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Angela Davis, autora de Mulheres, Raça e Classe (1981)
Além de revisões críticas de teorias e concepções clássicas e das teorias da ética do cuidado, há uma série de subdivisões e perspectivas feministas sobre a ética bastante diversa. O nó que as amarra parece ser precisamente a insistência na não-existência de uma teoria separada do contexto, da realidade em que se vive: nossas intuições mais imediatas, nossas crenças mais enraizadas, têm origem no mundo em que vivemos, nas milhares de coisas que aprendemos, nas situações a que fomos expostos, nos discursos que têm credibilidade em nosso meio. E teorizar sobre ética requer que coloquemos em movimento todo esse mundo interno que se cria a partir de tudo o que absorvemos de fora.


E é aí que as lentes do feminismo nos ajudam a ver que muitas das coisas que pensamos ser justas e imparciais podem ser reproduções acríticas daquilo que aprendemos, e reproduzir acriticamente uma realidade opressora com alguns grupos sociais é a forma mais eficiente de alimentá-la.

sexta-feira, 11 de novembro de 2016

Crianças não entendem nada de ética!

“Como foi seu dia papai?”
“Trabalhoso e com muitos alunos chatos que não prestam atenção em nada de importante...”
“Se um dia você for meu professor não vou ser chata, pai!”
“Eu sei que não, meu doce. E o seu dia? Foi boa a escola?”
“Não fui chata na escola e fiz meu dever bem cedo e agora a mamãe já está me ensinando uma música nova!”
“É mesmo? E vai tocar pra eu ouvir?”
“Só outro dia quando eu já for mais profissional!”
“Ah!”
“Mas tem mais uma coisa legal!”
“O que?”
“Uma coisa que você pode ensinar pros seus alunos, eu acho!”
“Se eles quisessem aprender alguma coisa...”
“Eles vão gostar porque é uma história, pai!”
“E você acha que eu conto histórias nas aulas de filosofia, filha?”
“Pois devia, porque as pessoas gostam de histórias!”
“Você é que gosta!”
“Mas é que essa é fácil de entender! Deixa eu contar que você vai saber!”
“Nossa! Conta logo que eu quero saber, então!”
“É que lembra quando você tava me ensinando aquelas coisas de ética?”
“Lembro sim! Algum professor falou sobre ética na aula?”
“Não, não...”
“Então?”
“É que eu fui na padaria do seu Júlio comprar seis pão que a mãe pediu...”
“Pães!”
“Como?”
“Nada, pode contar...”
“E daí tinha uma criança na minha frente e eu tava esperando...”
“E você não é mais uma criança?”
“Sim pai, mas é que era uma criança mais criança do que eu!”
“Tá... conta!”
“Mas deixa eu contar então!”
“Prossiga...”
“Daí a menininha...”
“A criança era uma menininha também?”
“Siiiiiiim pai! Daí ela pediu quatro pão...”
“Pães!”
“Aff!”
“Conta filha!”
“E daí ela tinha três reais só, que eu vi. E daí deu mais de dois reais os pãos, e a moça deu o troco pra ela, né. Só que daí a menininha pediu se dava pra comprar um brigadeiro daqueles bem grandes que tem lá com as moedas que sobrou, e daí a moça disse que sim!”
“E?”
“E não dava pai! A mãe só deixa eu comprar um brigadeiro por semana porque é três reais! Mas a menininha é muito criança e não sabia, e daí a moça pegou as moedas que era menos de um real e deu o brigadeiro pra ela!”
“E por que eu deveria contar essa história pros meus alunos?”
“Você não falou que ética é fazer a coisa mais certa mesmo quando parece errado?”
“E você achou isso certo?”
“...”
“Não é tão simples, pequena... Imagina só se agora a moça começar a dar brigadeiros pra todas as crianças que não tem dinheiro suficiente?”
“Não sei se ela vai fazer isso pai...”
“Não interessa!”
“Como assim?”
“É que a atitude dela não é certa porque se ela fizer isso todas as vezes que uma criança não tiver dinheiro para comprar um brigadeiro, daqui a pouco não vai mais existir brigadeiro na padaria do seu Júlio! E se toda moça que atende em padarias fizer isso vão se acabar todos os brigadeiros do mundo porque todo mundo que faz brigadeiro vai falir!”
“Mas a menininha ficou feliz e eu não sei se ela vai dar brigadeiro pra todas as crianças porque pra mim ela não deu...”
“Tudo bem... Se você quiser pensar em felicidade, então, você tem que pensar na felicidade de todos os envolvidos!”
“A moça não ficou triste por dar o brigadeiro...”
“Mas e o seu Júlio? A padaria não é dele? Será que ele fica feliz quando tem prejuízo? E será que a mãe da menininha ficou feliz por ela ter comido um brigadeiro? Será que a mãe dela não deu o dinheiro suficiente só para o pão porque era melhor que a menininha não comesse brigadeiro?”
“Como eu vou saber, pai?”
“Viu só! Não é tão simples a ética...”
“Tá...”
“E o que você pensa agora?”
“Sobre o que?”
“Sobre isso que eu te expliquei!”
“Acho difícil...”
“Sobre a moça, filha, você pensa que foi certo ou errado ela dar o brigadeiro?”
“Não sei...”
“Como não sabe?”
“Eu não sei muito bem ética, pai...”
“Mas sobre a atitude da moça, o que você pensa agora?”
“O mesmo de antes...”
“Que foi certa, filha?”
“Que foi bonita, pai...”

sexta-feira, 4 de novembro de 2016

Obras literárias podem ser encaradas como artefatos epistêmicos?

Parece razoável acreditar que pelo menos algumas obras literárias nos permitem ter um entendimento melhor sobre nós mesmos. Isto pode sugerir que, através de obras literárias, podemos adquirir conhecimento acerca de nossa individualidade e até mesmo de nossa humanidade compartilhada. Creio que este fenômeno sugere duas alternativas: ou obras literárias são artefatos epistêmicos, i.e., artefatos cujo uso é fundamento do estatuto epistêmico positivo de que certas crenças desfrutam, ou obras literárias simplesmente habilitam aquilo que, por sua vez, fundamentará o estatuto epistêmico positivo de que certas crenças desfrutam.


Tendo em vista nos fazer compreender o que são artefatos epistêmicos, filósofos como Duncan Pritchard e Orestis Palermos (2016) adotam uma estratégia indutiva, no qual eles ilustram tal conceito mediante exemplos. Para nós, exemplos típicos de artefatos epistêmicos são listas de compras, calendários, telescópios, termômetros, relógios, microscópios, satélites, calculadoras etc. Uma vez que não há, nesta literatura, uma análise conceitual propriamente dita de ‘artefato epistêmico’, dou-me a liberdade de oferecer uma:

(AE) Um artefato x é um artefato epistêmico se, e somente se, x é um artefato do qual deriva o estatuto epistêmico positivo que ao menos uma crença p qualquer desfruta.

Tal análise explicita a presença de uma relação de fundamentação metafísica (metaphysical grounding) entre o uso de um artefato epistêmico e o estatuto epistêmico positivo desfrutado por uma crença resultante deste uso. O filósofo Jonathan Schaffer representa esta relação como “x\y”, o que significa que x é fundamento de y (cf. Schaffer 2009). Adaptando para o meu contexto, esta relação pode ser representada como “Ax\Np”, onde “Np” representa o estatuto normativo relevante para o conhecimento satisfeito por p, “Ax” o artefato do qual essa satisfação é derivada e “\” a relação de fundamentação presente entre Ax e Np. Assim, por exemplo, onde o artefato telescópio é o fundamento do estatuto epistêmico positivo da crença de que há crateras na Lua, poderíamos representar tal ocorrência como At\NcL. Formalidades, apenas.

Três concepções estruturalmente distintas da realidade, por J. Schaffer.

De acordo com AE, relógios, termômetros, calendários, listas de compras etc. são artefatos epistêmicos se, e somente se, são artefatos do qual o estatuto epistêmico positivo que ao menos uma crença p qualquer desfruta é derivado. Ora, a presente análise conceitual parece acomodar muito bem todos estes casos, mas dá ela espaço para que obras literárias sejam encaradas como artefatos epistêmicos? Se “não”, então deveríamos concluir que a presente análise conceitual é restritiva demais ou, pelo contrário, que é inapropriado tratar obras literárias como artefatos epistêmicos? Deixo ao leitor a possibilidade de levar esta discussão adiante.

Na minha próxima contribuição ao blog do GERMINA, pretendo explorar uma segunda alternativa, a saber, a de que obras literárias são artefatos que habilitam competências imaginativas, empáticas e conceituais que nos permitem adquirir um entendimento mais amplo sobre nós mesmos. Isto permitiria adotar uma solução negativa ao presente problema sem que, para isto, rejeitemos o contributo de obras literárias no que diz respeito ao enriquecimento de nosso contato cognitivo com o mundo.