sexta-feira, 4 de novembro de 2016

Obras literárias podem ser encaradas como artefatos epistêmicos?

Parece razoável acreditar que pelo menos algumas obras literárias nos permitem ter um entendimento melhor sobre nós mesmos. Isto pode sugerir que, através de obras literárias, podemos adquirir conhecimento acerca de nossa individualidade e até mesmo de nossa humanidade compartilhada. Creio que este fenômeno sugere duas alternativas: ou obras literárias são artefatos epistêmicos, i.e., artefatos cujo uso é fundamento do estatuto epistêmico positivo de que certas crenças desfrutam, ou obras literárias simplesmente habilitam aquilo que, por sua vez, fundamentará o estatuto epistêmico positivo de que certas crenças desfrutam.


Tendo em vista nos fazer compreender o que são artefatos epistêmicos, filósofos como Duncan Pritchard e Orestis Palermos (2016) adotam uma estratégia indutiva, no qual eles ilustram tal conceito mediante exemplos. Para nós, exemplos típicos de artefatos epistêmicos são listas de compras, calendários, telescópios, termômetros, relógios, microscópios, satélites, calculadoras etc. Uma vez que não há, nesta literatura, uma análise conceitual propriamente dita de ‘artefato epistêmico’, dou-me a liberdade de oferecer uma:

(AE) Um artefato x é um artefato epistêmico se, e somente se, x é um artefato do qual deriva o estatuto epistêmico positivo que ao menos uma crença p qualquer desfruta.

Tal análise explicita a presença de uma relação de fundamentação metafísica (metaphysical grounding) entre o uso de um artefato epistêmico e o estatuto epistêmico positivo desfrutado por uma crença resultante deste uso. O filósofo Jonathan Schaffer representa esta relação como “x\y”, o que significa que x é fundamento de y (cf. Schaffer 2009). Adaptando para o meu contexto, esta relação pode ser representada como “Ax\Np”, onde “Np” representa o estatuto normativo relevante para o conhecimento satisfeito por p, “Ax” o artefato do qual essa satisfação é derivada e “\” a relação de fundamentação presente entre Ax e Np. Assim, por exemplo, onde o artefato telescópio é o fundamento do estatuto epistêmico positivo da crença de que há crateras na Lua, poderíamos representar tal ocorrência como At\NcL. Formalidades, apenas.

Três concepções estruturalmente distintas da realidade, por J. Schaffer.

De acordo com AE, relógios, termômetros, calendários, listas de compras etc. são artefatos epistêmicos se, e somente se, são artefatos do qual o estatuto epistêmico positivo que ao menos uma crença p qualquer desfruta é derivado. Ora, a presente análise conceitual parece acomodar muito bem todos estes casos, mas dá ela espaço para que obras literárias sejam encaradas como artefatos epistêmicos? Se “não”, então deveríamos concluir que a presente análise conceitual é restritiva demais ou, pelo contrário, que é inapropriado tratar obras literárias como artefatos epistêmicos? Deixo ao leitor a possibilidade de levar esta discussão adiante.

Na minha próxima contribuição ao blog do GERMINA, pretendo explorar uma segunda alternativa, a saber, a de que obras literárias são artefatos que habilitam competências imaginativas, empáticas e conceituais que nos permitem adquirir um entendimento mais amplo sobre nós mesmos. Isto permitiria adotar uma solução negativa ao presente problema sem que, para isto, rejeitemos o contributo de obras literárias no que diz respeito ao enriquecimento de nosso contato cognitivo com o mundo.

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