sexta-feira, 16 de dezembro de 2016

Imaginação simpática e literatura

Na minha contribuição anterior ao blog do GERMINA, tentei responder à questão sobre de que modo obras literárias enriquecem o nosso contato cognitivo com o mundo a partir da tentativa de concebê-las como artefatos epistêmicos, i.e., artefatos cujo uso é o fundamento do estatuto epistêmico positivo de algumas de nossas crenças. Uma segunda alternativa, porém, é o de que obras literárias enriquecem o nosso contato cognitivo com o mundo enquanto artefatos que habilitam nossas capacidades imaginativas, empáticas e conceituais. A brevidade desta publicação não permite que eu explore essa alternativa em todo o seu potencial, de modo que a presente contribuição será bastante limitada. Em particular, a presente contribuição pretende, primeiramente, apresentar um argumento favorável à ideia de que nossas capacidades imaginativas e empáticas, exercitadas em conjunto, enriquecem o nosso contato cognitivo com o mundo e, posteriormente, sugerir exemplos de alguns poemas que habilitam tais capacidades.

Sem rodeios, o argumento pode ser construído da seguinte maneira:
P1. Se o exercício da imaginação simpática nos permite ter acesso a determinados aspectos da realidade, então o exercício da imaginação simpática possui um funcionamento cognitivo (condicionalmente) apropriado.
P2. Se o exercício da imaginação simpática possui um funcionamento cognitivo (condicionalmente) apropriado, então a imaginação simpática é uma fonte legítima de garantia epistêmica.
P3. O exercício da imaginação simpática nos permite ter acesso a determinados aspectos da realidade.
Logo,
C1. O exercício da imaginação simpática possui um funcionamento cognitivo (condicionalmente) apropriado (modus ponensP1P3).
C2. A imaginação simpática é uma fonte legítima de garantia epistêmica (modus ponensP2C1).
O argumento poderia ser construído, alternativamente, a partir de silogismo hipotético seguido de modus ponens. O resultado final seria o mesmo. Para uma explicação de cada uma das premissas do argumento, leia aqui.

A meu ver, alguns bons exemplos de poemas que habilitam a imaginação simpática são “Visitando o pavilhão sul do Templo Chongzhen”, de Yu Xuanji – para o qual fiz uma tradução“Fragmento 395”, de Anacreonte; e “O Cutelo”, de Dirceu Villa. Este último, de um poeta brasileiro e contemporâneo, trata-se de um poema incrivelmente bem construído. Nele, Villa, através de elementos como ritmo, aliterações e uma escrita permutacional, cria um poema cuja dinâmica facilita, a meu ver, o efeito estético desejado – estimulando o exercício de nossa imaginação simpática que, neste caso, é direcionado à perspectiva dos porcos cujos corpos estão expostos no açougue.

São cortes na pedra lanhada de sangue, / ou fendas, de onde a morte o espreita, / açougueiro no sonho vermelho, acariciando / o fio afiado, o sorriso sutil do cutelo, / que corta. (...)
Villa adota dois pés básicos na construção do ritmo dos versos que compõem o poema: o iambo (—) e o anapesto (∪∪—). Um iambo é um pé constituído por uma sílaba átona () seguida de uma tônica (—). Um anapesto é um pé constituído por duas sílabas átonas (∪∪) seguidas de uma sílaba tônica (—). O resultado de uma sequência de anapestos soa familiar a um galope: papa-TUM, papa-TUM, papa-TUM, papa-TUM. E trata-se de um pé utilizado com muita frequência durante todo o poema, o que lhe dá, a meu ver, uma grande dinamicidade. Para exemplificar o quão recorrente são os anapestos ao longo do poema, tomemos seus seis primeiros versos: “São ossos. E às vezes, a banha amarela nos ossos; / e às vezes, o sangue vermelho nas unhas. / São porcos, ou são as cabeças dos porcos, / penduram num gancho as cabeças, / ou a cara de espida morte dos porcos / no vidro embaçado do açougue.” Nestes seis primeiros versos, podemos contar cinco iambos acoplados de 18 anapestos!

Acresça-se a isso as muitas aliterações presentes no poema, como, por exemplo, a aliteração quadrimembre em b no sétimo verso “Ou o branco, mas branco embebido de rosa”, ou as aliterações bimembres f-fs-s e c-c e trimembre t-t-t no último verso do poema “o fio afiado, o sorriso sutil do cutelo, que corta.”

Por fim, Dirceu Villa une um ritmo “agalopado” às abundantes aliterações e à escrita permutacional adotadas no poema, na qual ele gira e reposiciona as palavras, num jogo de linguagem que, como observou Ricardo Domeneck, “parece imitar o de uma câmera em filmagem giratória, ou, talvez, por um segundo, o que adentra os olhos do porco, fixados em sua cabeça, que cai após ser cortada.” Com efeito, os elementos adotados por Villa na construção do poema são capazes de elicitar a imaginação simpática do leitor com considerável facilidade.

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