sexta-feira, 20 de janeiro de 2017

GERMINA GERMINANDO

O objetivo deste texto, com o perdão da violência metafórica contra os coelhinhos, é acertar dois ou três com um golpe só. Os repetidos dias gastos – e pouco vividos – pensando e escrevendo exclusivamente sobre o tema da dissertação, tem me nauseado e impedido melhores ideias para compartilhar aqui no blog. Além disso, no mês de Novembro do peculiarmente desastroso 2016, Luana, Jean e eu fomos apresentar, na escola Sérgio Lopes, a primeira filha do GERMINA, nossa cartilha! Deveríamos ter compartilhado antes a experiência com o resto do grupo, mas estávamos sufocados de atividades que não terminaram enquanto os dias foram passando... Resolvi narrar e compartilhar, aqui, então, nossas idas à escola. Aí estão dois coelhos. O terceiro é a chance de poder escrever livremente sem precisar referenciar ninguém nem imaginar o fantasma da banca, pelas minhas costas, lendo o que escrevo com ar de desaprovação. Mas vamos à escola!

No dia 23 foi nosso primeiro encontro. A primeira surpresa foi a localização periférica da escola e a distância a ser vencida para chegar até ela, resolvida por um taxista que, enquanto dirigia, tirava várias dúvidas de aspectos jurídicos com nossa advogada Luana, da qual esteve perto de contratar serviços. Depois que descobrimos como entrar na escola, fomos muito bem recebidos, mas ficamos um pouco chocados quando percebemos que a sala de aula era, na verdade, um container. A bem da verdade, a turma, de oitavo ano, era pequena, apenas nove alunos. Mas com nove mesas e cadeiras para nove estudantes, mais três cadeiras pra os três sujeitos que requisitaram as duas últimas horas da manhã para falar de suas coisas e, ainda mais uma, para a diretora que decidiu acompanhar os trabalhos, ninguém há de duvidar que o limitado espaço do container ficou muito bem preenchido. Some-se a isso o calor de novembro, a porta fechada e a minúscula janela que assumiu sozinha o compromisso de ventilar o espaço. Qualquer lamentação possível, no entanto, termina aqui.

Nesse primeiro encontro, Luana e Jean apresentaram, mais propriamente, seus textos que, juntos, tratam do que é cidadania a partir dos direitos e das responsabilidades. Entregamos e lemos os textos, mas, sobretudo, conversamos e refletimos a partir das provocações que partiram de nós três e que voltaram para nós logo em seguida. Em pouco tempo, já não eram três sujeitos da universidade, nove estudantes do ensino básico e uma diretora em uma sala container: éramos um grupo. Descobrimos que em nosso grupo havia um vereador mirim, muito articulado e com leituras políticas surpreendentes. Como não poderia deixar de ser, conversamos sobre nosso caótico e fétido contexto político, não exatamente com estas palavras, claro. Mas falamos todos, também, um pouquinho de nossas vidas, de nossos sonhos, de nossos desassossegos. Descobrimos que há uma futura grande jogadora de futebol na turma, e também que há um menino que considera lasanha a melhor coisa da vida – com muitos méritos, há de se concordar...

Um dos meninos do grupo, no entanto, chamou em especial nossa atenção, e não foi por gostar de lasanha. Mais quieto do que os outros oito, menos disposto a rir de nossas piadas, recolhido em si mesmo lutou, apesar de não vencer o tempo todo, contra o sono que se evidenciava em seu ânimo e em sua feição. Mas havia algo mais. Uma tristeza, daquelas que não dá para esconder, um desânimo que é difícil de ser disfarçado com sorrisos forçados. Conversamos a respeito com a diretora, no final da aula, e ela contou-nos um pouco da história. Abandonos repetidos, extensa pobreza, ausência de um mínimo núcleo verdadeiramente familiar... vivências pesadas demais para uma criança suportar.

Voltamos caminhando da escola. Entusiasmados pelo encontro que superou positivamente nossas expectativas, mas comovidos com o triste e franzino garoto. Conversamos, durante os quarenta minutos de caminhada, sobre o quanto nossas perspectivas éticas, nossos modelos de interpretação filosófica, nossos estafes teóricos se mostram insuficientes perante a inabarcável e inescapável realidade do mundo, perante a imagem triste de um menino desolado, na dura lida de safar-se praticamente sozinho na vida que mal começou. Poderia dizer que foi uma lição de humildade que aprendemos, mas sei que foi mais que isso. Primeiro, porque não nos apresentamos com a intenção de ensinar algo. Segundo, sobretudo, porque o breve convívio com aquela gente humildemente grata, e com a história triste do menino franzino, despertou em nós qualquer coisa difícil de narrar. Um afeto comovido, certo senso comprometido de humanidade e a vontade de voltar, na semana seguinte, para a escola.

No dia 30 voltamos e havíamos acordado que eu falaria, prioritariamente, de meu texto sobre a felicidade. Um dia antes, no entanto, acontecerá a tragédia com o avião da Chapecoense. Tenho ligações afetivas com o clube e com a cidade, além de vários conhecidos que encontraram seu fim na irresponsabilidade mesquinha que vitimou derradeiramente aqueles 71. Estava me sentindo profundamente triste, e ao encontrar Luana seu semblante delatou que ela também carregava uma tristeza a mais naquele dia. Nossa sorte é que Jean, com sua típica serenidade e bom ânimo, ajudou a ser agradável o caminho até a escola.

Quando entramos na sala container, diferente da impressão claustrofóbica da semana anterior, eu me senti aconchegado. Contei que estava triste, expliquei por que, confessei que não me sentia à vontade para falar de felicidade e que achava até um pouco irônico tratar do tema justo naquele dia. Conversamos, todos, um pouco, sobre nossas tristezas, sobre como, pelo menos uma boa parte delas, são inevitáveis na vida. Então descobrimos que é justamente nos momentos mais tristes que se faz mais necessário pensar sobre e entender o que é felicidade, para não esquecer de reparar na beleza e na alegria das pequenas coisas que nos ligam amorosamente ao mundo.

Luana e Jean me ajudaram a ler e discutir com os pequenos e com a diretora o texto. Por fim, contamos a história de um sujeito que queria ser jogador de futebol, mas que teve que largar o esporte e acabou se transformando num dos maiores escritores e pensadores de seu tempo. Compartilhamos sua mensagem de que, não obstante os absurdos e as tragédias, há, na beleza do mundo e no milagre sem deus que é a vida, alguma coisa que nos faz sentir que é bom viver. No final, eles disseram que gostaram dos encontros e não tivemos dúvidas de que estavam sendo honestos, porque partilhamos do mesmo sentimento. Entre os abraços afetuosos tocou o sinal e a correria para o almoço foi inevitável.

Voltamos, Luana, Jean e eu, a pé novamente. O sol estava especialmente disposto naquele dia, o que me deixou com aspecto de um camarão gigante – melhor que a barata de Kafka, ao menos! Mas tudo estava muito bem. Conversamos pelos mesmos quarenta minutos de caminhada, e percebi que minha tristeza já não encontrava o mesmo sentido de que se gabava de manhã cedo, nem a de Luana. Escrevo em primeira pessoa e falo do que senti porque essa é a forma mais honesta que posso proceder. Mas tenho certeza de que para a Luana e para o Jean esses encontros foram igualmente importantes e felizes. Que nesse ano, o GERMINA, com outros rostos e perspectivas, possa continuar indo às escolas, levando as reflexões que fazemos até o lugar onde elas precisam chegar, e trazendo de volta o senso humilde e sereno que nos liga à realidade do mundo e das pessoas, por vezes triste, mas certamente inspiradora. 

sexta-feira, 13 de janeiro de 2017

A Sociedade dos Atores Mortos

Há alguns dias fui assistir ao filme Rogue One: uma História Star Wars no cinemaFiquei surpreso ao ver na telona o Comandante Tarkin, personagem que no primeiro filme da trilogia clássica é interpretado pelo ator inglês Peter Cushing. O novo filme da franquia Star Wars narra os eventos que são resumidos nos letreiros amarelos de Star Wars: Episódio IV – Uma Nova Esperança, portanto a presença da personagem de Cushing é justificável no enredo do longa. Porém o motivo de minha surpresa foi eu estar vendo o próprio Peter Cushing em cena. Um ator que faleceu há mais de vinte anos! Bem, não era exatamente ele, mas sua figura reconstruída pelo que há de mais moderno em termos de computação gráfica e a partir de um vasto banco de imagens da Lucasfilm. 
Atores que "estrelam" em filmes mesmo depois de mortos não é algo tão incomum na história do cinema. Algumas vezes, por infortúnio, os atores morrem antes de concluir as filmagens de uma produção. Nesses casos há a possibilidade do diretor aproveitar o trabalho que o ator deixou usando uma série de recursos como montagem, adaptação do roteiro, dublês e computação gráfica para finalizar o filme. N'O Mundo Imaginário de Dr. Parnassus, por exemplo, o roteiro foi modificado de modo que a personagem principal mudasse as feições do rosto durante a narrativa para que assim pudesse ser interpretado por Johnny Depp, Colin Farrell e Jude Law nas cenas que Heath Ledger não conseguiu filmar. Outro exemplo é o filme Gladiador no qual o ator Oliver Reed foi substituído por dublês e por efeitos de computação gráfica. O mesmo ocorreu com Paul Walker em Velozes e Furiosos 7. No entanto, todos esses são exemplos de filmes em que os atores começaram a produção, mas não puderam concluir. O caso de Rogue One é diferente. Apesar de Peter Cushing já ter interpretado o Comandante Tarkin anteriormente, ele foi escalado para fazer a personagem em um filme novo.



Este curioso acontecimento do mundo do cinema me lembrou um filme de 2013, O Congresso Futurista do diretor israelense Ari Folman. Neste filme a atriz Robin Wright, que interpreta a si mesma, tem seu corpo e suas emoções escaneadas e armazenadas em um computador. Dessa forma ela não precisa mais atuar fisicamente, pois um software passa a fazer isso por ela.  A partir daquele momento o estúdio de cinema com o qual ela assinou contrato torna-se dono de sua imagem para usá-la como bem entender. Este, aliás, é o motivo de maior hesitação de Robin em assinar o contrato, seu direito de escolha sendo eliminado. Ao contrário de Cushing, a Robin Wright do filme nunca tinha interpretado as personagens dos filmes que o estúdio produziu com sua versão computadorizada. Mas assim como ela, Peter Cushing não pôde escolher estar em Rogue One 
Do ponto de vista legal, os produtores que trouxeram Peter Cushing de volta às telonas estão apoiados no direito de propriedade de imagem. Mas o uso dessa tecnologia em Rogue One abriu espaço para uma complexa discussão ética e estética sobre o uso da imagem de atores que já se foram. Até que ponto a imagem de alguém pode pertencer a outros? É válido "trazer de volta" atores falecidos? Será que nós queremos ver isso em outros filmes 


sexta-feira, 6 de janeiro de 2017

A Pequena Sombra

Já era noite, quando o solitário morador da Rua das Flores tentava ultrapassar a porta da sua residência. Em suas mãos, a chave parecia um objeto de outro mundo; aos seus olhos, a fechadura parecia um obstáculo intransponível. A sua perseverança, no entanto, o levou a dominar aquela estranha tecnologia e, enfim, entrar em casa. Imediatamente, a mão pôs-se a alcançar o interruptor. Mesmo automático, esse movimento não foi preciso. O indicador tocou algumas vezes na parede antes de encontrar o seu destino. A luz não se acendeu. O ventilador de teto não ligou.

Fechou a porta sem chaveá-la. Era perseverante, mas não tanto assim, a ponto de reviver o mesmo desafio mais uma vez. Largou a chave na mesa e ficou parado, imobilizado pela circunstância embaraçosa. Lembrou-se que guardava velas na gaveta da escrivaninha. Começou a tatear as paredes. Os pés seguiram vacilantes à sua iniciativa, como se temessem cair em algum buraco no meio da sala. Após uma série de movimentos – provavelmente – jocosos, bateu-se contra a familiar quina da escrivaninha. Digo “provavelmente” porque estava escuro demais para se afirmar com certeza sobre a jocosidade daqueles movimentos. Enfim, agora estava perto da gaveta e era isso que importava. Tateou mais um pouco e abriu a gaveta. Com os olhos mais acostumados à escuridão, não demorou a encontrar a vela e o isqueiro.

Surpreendentemente, conseguiu acender a vela com facilidade e logo a pôs sobre a mesa. Sentou-se na cadeira diante da escrivaninha e ficou a observar o fogo enquanto regurgitava algumas lembranças recentes. Estava satisfeito com aquele dia. No trabalho, conversara com o chefe sobre a frequência de atrasos e a falta de produtividade do seu colega de repartição e sobre como isso era absurdo e desonesto. Mas afinal, por que diabos ele precisava conviver com aquela situação? Que esse parasita fosse parasitar em outra vizinhança! No fim das contas, o chefe foi implacável e tratou de encaminhar o infeliz para o olho da rua. Como essa sensação de dever cumprido o agradava. Parou de relembrar, porém sem desviar o olhar do fogo.

Sentiu-se inspirado e decidiu reviver um antigo hábito da juventude: escrever poeminhas. Retirou um retalho e um lápis da mesma gaveta que retirara a vela. Observou a chama inquieta e a maravilha das sombras projetadas ao seu redor. Seria um poeminha sobre aquela cena. Uma tentativa de sintetizar aquele momento em palavras. Estava enferrujado, mas a inspiração tem o seu efeito revigorante. Escreveu e riscou até ficar contente com o resultado. Leu em voz alta: No balanço da chama / a primeira dança / da pequena sombra. Fechou os olhos brevemente e sorriu sem mostrar os dentes. Ao abri-los, uma situação estranha aconteceu.

Uma pequena sombra em forma humana surgiu em pé sobre a superfície da escrivaninha. Antes que pudesse demonstrar o seu espanto, a sombra perguntou:
– Então, você está satisfeito com seu dia, não é?
Sem saber bem o porquê, respondeu à sombra como se falasse com outra pessoa qualquer.
– Sim, posso dizer que foi um dia bastante satisfatório. Finalmente, eu tive uma conversa com o meu chefe sobre o meu colega relapso e ele tomou medidas drásticas. O infeliz agora não trabalha mais lá.
A sombrinha falou de maneira provocativa:
– O mesmo colega que lhe emprestou aquele dinheiro dois anos atrás? Que está com o filho com aquela doença grave? Que o imóvel corre o risco de ser confiscado?
Ele respondeu sem jeito:
– Eu já paguei o empréstimo... Se ele sabia que estava numa situação delicada, ele deveria ter se comprometido mais com o trabalho. Regras são regras. Ele deveria ter chegado no horário e cumprido a quota de produção.
A interlocutora inconveniente continuou as suas provocações:
– E se o motivo dele não se comprometer seja exatamente a sua situação delicada? Ele se atrasava tanto assim? Dois anos atrás, não era você quem deixava a desejar no trabalho?

O morador da Rua das Flores queria dizer “Mas é diferente...”, entretanto não disse nada. Um gosto amargo ficou em sua boca, talvez porque esse fosse o sabor de suas palavras não ditas. Já não estava tão satisfeito com o seu dia. Talvez, amanhã fosse falar novamente com o chefe e admitir que se enganara, mas pensou que as coisas não eram tão simples assim. Ele poderia ficar sem emprego também. Não havia garantias. O medo era maior do que o desejo de redenção. Talvez, ele poderia ligar para o seu colega – ex-colega, ex-amigo –, dizer que sentia muito e oferecer um empréstimo. Decidiu que não ligar seria melhor para ambos. O pobre infeliz não aguentaria uma vergonha dessas. Animou-se com a sua sagacidade de pensamento, fechou os olhos e respirou fundo aliviado. Quando abriu os olhos, a pequena sombra já não estava mais lá.