O objetivo deste texto,
com o perdão da violência metafórica contra os coelhinhos, é acertar dois ou
três com um golpe só. Os repetidos dias gastos – e pouco vividos – pensando e
escrevendo exclusivamente sobre o tema da dissertação, tem me nauseado e impedido
melhores ideias para compartilhar aqui no blog. Além disso, no mês de Novembro
do peculiarmente desastroso 2016, Luana, Jean e eu fomos apresentar, na escola
Sérgio Lopes, a primeira filha do GERMINA, nossa cartilha! Deveríamos ter
compartilhado antes a experiência com o resto do grupo, mas estávamos sufocados
de atividades que não terminaram enquanto os dias foram passando... Resolvi
narrar e compartilhar, aqui, então, nossas idas à escola. Aí estão dois
coelhos. O terceiro é a chance de poder escrever livremente sem precisar
referenciar ninguém nem imaginar o fantasma da banca, pelas minhas costas,
lendo o que escrevo com ar de desaprovação. Mas vamos à escola!
No dia 23 foi nosso
primeiro encontro. A primeira surpresa foi a localização periférica da escola e
a distância a ser vencida para chegar até ela, resolvida por um taxista que,
enquanto dirigia, tirava várias dúvidas de aspectos jurídicos com nossa
advogada Luana, da qual esteve perto de contratar serviços. Depois que
descobrimos como entrar na escola, fomos muito bem recebidos, mas ficamos um
pouco chocados quando percebemos que a sala de aula era, na verdade, um container.
A bem da verdade, a turma, de oitavo ano, era pequena, apenas nove alunos. Mas
com nove mesas e cadeiras para nove estudantes, mais três cadeiras pra os três
sujeitos que requisitaram as duas últimas horas da manhã para falar de suas
coisas e, ainda mais uma, para a diretora que decidiu acompanhar os trabalhos,
ninguém há de duvidar que o limitado espaço do container ficou muito bem
preenchido. Some-se a isso o calor de novembro, a porta fechada e a minúscula
janela que assumiu sozinha o compromisso de ventilar o espaço. Qualquer lamentação
possível, no entanto, termina aqui.
Nesse primeiro
encontro, Luana e Jean apresentaram, mais propriamente, seus textos que,
juntos, tratam do que é cidadania a partir dos direitos e das
responsabilidades. Entregamos e lemos os textos, mas, sobretudo, conversamos e
refletimos a partir das provocações que partiram de nós três e que voltaram para
nós logo em seguida. Em pouco tempo, já não eram três sujeitos da universidade,
nove estudantes do ensino básico e uma diretora em uma sala container: éramos
um grupo. Descobrimos que em nosso grupo havia um vereador mirim, muito
articulado e com leituras políticas surpreendentes. Como não poderia deixar de
ser, conversamos sobre nosso caótico e fétido contexto político, não exatamente
com estas palavras, claro. Mas falamos todos, também, um pouquinho de nossas
vidas, de nossos sonhos, de nossos desassossegos. Descobrimos que há uma futura
grande jogadora de futebol na turma, e também que há um menino que considera
lasanha a melhor coisa da vida – com muitos méritos, há de se concordar...
Um dos meninos do
grupo, no entanto, chamou em especial nossa atenção, e não foi por gostar de
lasanha. Mais quieto do que os outros oito, menos disposto a rir de nossas
piadas, recolhido em si mesmo lutou, apesar de não vencer o tempo todo,
contra o sono que se evidenciava em seu ânimo e em sua feição. Mas havia algo
mais. Uma tristeza, daquelas que não dá para esconder, um desânimo que é
difícil de ser disfarçado com sorrisos forçados. Conversamos a respeito com a
diretora, no final da aula, e ela contou-nos um pouco da história. Abandonos
repetidos, extensa pobreza, ausência de um mínimo núcleo verdadeiramente
familiar... vivências pesadas demais para uma criança suportar.
Voltamos caminhando da
escola. Entusiasmados pelo encontro que superou positivamente nossas
expectativas, mas comovidos com o triste e franzino garoto. Conversamos,
durante os quarenta minutos de caminhada, sobre o quanto nossas perspectivas
éticas, nossos modelos de interpretação filosófica, nossos estafes teóricos se
mostram insuficientes perante a inabarcável e inescapável realidade do mundo,
perante a imagem triste de um menino desolado, na dura lida de safar-se
praticamente sozinho na vida que mal começou. Poderia dizer que foi uma lição
de humildade que aprendemos, mas sei que foi mais que isso. Primeiro, porque
não nos apresentamos com a intenção de ensinar algo. Segundo, sobretudo, porque
o breve convívio com aquela gente humildemente grata, e com a história triste do
menino franzino, despertou em nós qualquer coisa difícil de narrar. Um afeto
comovido, certo senso comprometido de humanidade e a vontade de voltar, na
semana seguinte, para a escola.
No dia 30 voltamos e
havíamos acordado que eu falaria, prioritariamente, de meu texto sobre a
felicidade. Um dia antes, no entanto, acontecerá a tragédia com o avião da
Chapecoense. Tenho ligações afetivas com o clube e com a cidade, além de vários
conhecidos que encontraram seu fim na irresponsabilidade mesquinha que vitimou
derradeiramente aqueles 71. Estava me sentindo profundamente triste, e ao
encontrar Luana seu semblante delatou que ela também carregava uma tristeza a
mais naquele dia. Nossa sorte é que Jean, com sua típica serenidade e bom
ânimo, ajudou a ser agradável o caminho até a escola.
Quando entramos na sala
container, diferente da impressão claustrofóbica da semana anterior, eu me
senti aconchegado. Contei que estava triste, expliquei por que, confessei que
não me sentia à vontade para falar de felicidade e que achava até um pouco irônico
tratar do tema justo naquele dia. Conversamos, todos, um pouco, sobre nossas
tristezas, sobre como, pelo menos uma boa parte delas, são inevitáveis na vida.
Então descobrimos que é justamente nos momentos mais tristes que se faz mais necessário
pensar sobre e entender o que é felicidade, para não esquecer de reparar na beleza e na
alegria das pequenas coisas que nos ligam amorosamente ao mundo.
Luana e Jean me
ajudaram a ler e discutir com os pequenos e com a diretora o texto. Por fim,
contamos a história de um sujeito que queria ser jogador de futebol, mas que
teve que largar o esporte e acabou se transformando num dos maiores escritores
e pensadores de seu tempo. Compartilhamos sua mensagem de que, não obstante os
absurdos e as tragédias, há, na beleza do mundo e no milagre sem deus que é a
vida, alguma coisa que nos faz sentir que é bom viver. No final, eles disseram que
gostaram dos encontros e não tivemos dúvidas de que estavam sendo honestos,
porque partilhamos do mesmo sentimento. Entre os abraços afetuosos tocou o
sinal e a correria para o almoço foi inevitável.
Voltamos, Luana, Jean e
eu, a pé novamente. O sol estava especialmente disposto naquele dia, o que me
deixou com aspecto de um camarão gigante – melhor que a barata de Kafka, ao
menos! Mas tudo estava muito bem. Conversamos pelos mesmos quarenta minutos de
caminhada, e percebi que minha tristeza já não encontrava o mesmo sentido de
que se gabava de manhã cedo, nem a de Luana. Escrevo em primeira pessoa e falo
do que senti porque essa é a forma mais honesta que posso proceder. Mas tenho
certeza de que para a Luana e para o Jean esses encontros foram igualmente
importantes e felizes. Que nesse ano, o GERMINA, com outros rostos e
perspectivas, possa continuar indo às escolas, levando as reflexões que fazemos
até o lugar onde elas precisam chegar, e trazendo de volta o senso humilde e
sereno que nos liga à realidade do mundo e das pessoas, por vezes triste, mas
certamente inspiradora.