sexta-feira, 3 de fevereiro de 2017

Multiculturalismo em Debate


            Conforme Charles Taylor, na filosofia política, o multiculturalismo pode ser tomado como uma extensão da política de igual dignidade surgida no Ocidente a partir do pensamento liberal. O respeito igual que todo o indivíduo merece está fundamentado sobre uma base universal de justificação que atribui a todos os seres humanos, indiscriminadamente, características homogêneas que tornam os indivíduos intrinsecamente dignos de respeito. Em termos políticos, esse princípio moral se traduz em uma gama idêntica de direitos e deveres que todos possuem igualmente dentro do quadro jurídico de um Estado-nação democrático. Todavia, o multiculturalismo é um “braço” da política liberal que, de certo modo, se revolta contra o corpo de ideias que está na sua origem.  
            Sem dúvida, o desenvolvimento do pensamento liberal que exalta a liberdade e a dignidade do indivíduo foi um ganho inestimável para a humanidade. No entanto, a objeção multicultural direcionada a uma das bases do pensamento liberal (a igualdade) procura apontar a limitação quanto à aplicação deste princípio. Segundo um crítico do multiculturalismo, Brian Barry, tal objeção pode ser apresentada na seguinte formulação: “a mesma lei pode ter impactos diferentes sobre diferentes pessoas em virtude de suas crenças religiosas ou práticas culturais, portanto, a reivindicação liberal de que o igual tratamento pode ser garantido através da aplicação de um sistema uniforme de leis é falso”. Tal declaração remete exatamente à extensão realizada pelo multiculturalismo em relação ao pensamento liberal.
               Isso ocorre porque a luta por reconhecimento e direitos que antes estava mais ligada ao nível pessoal do indivíduo passou, sobretudo no decorrer do século XX, a ser compreendido também através da categoria de grupo. Como nos diz Appiah, “a identidade individual de cada pessoa é vista como tendo duas dimensões principais”, a dimensão pessoal e a dimensão coletiva. A primeira dessas dimensões remete aos traços psicológicos pelos quais nos distinguimos dentro de nosso grupo (inteligência, perspicácia, charme, etc.), já a segunda, diz respeito a uma distinção sociológica, caracterizada pelos traços compartilhados (comportamento, crenças, etc.), os quais fornecem uma base comum para a construção da identidade individual no interior de um grupo.            
            Assim, povos nativos, minorias nacionais (indígenas norte-americanos ou québécois no Canadá) e outros grupos minoritários, em nome de suas identidades coletivas, passam a reivindicar não só o reconhecimento e respeito, mas também direitos especiais para o grupo, uma vez que seus costumes e crenças não se coadunam a muitos dos costumes e das crenças mantidas por uma maioria nacional. Nesse sentido, a objeção multicultural ao princípio liberal da igualdade procura reformular a própria noção de igual dignidade. A categoria da “diferença” entra numa espécie de choque dialético com a “igualdade”, travando um embate que, vamos aqui supor, é necessário para a emergência de um modelo político democraticamente mais adequado, dado o contexto de uma sociedade constituída por uma diversidade cultural. Precisamos de leis mais justas, nas quais grupos minoritários não sofram consequências negativas devido à aplicação jurídica de princípios que, na sede por abrangência, acabem fornecendo diretrizes etnocêntricas e homogeneizadoras que desrespeitam as diferenças e minimizam ou desconsideram o papel que as identidades coletivas possuem na vida dos integrantes destes grupos.
            Obviamente, não existem soluções simples no terreno da política. Uma crítica recorrente se refere ao aspecto comunitário do multiculturalismo. Uma vez que as reivindicações não falam apenas de tolerância ou respeito, mas também de concessões políticas na forma de direitos que possam garantir a sobrevivência das práticas e crenças características destes grupos, fica a questão: como atender a tais reivindicações no caso de grupos cujas práticas e costumes potencialmente (ou efetivamente) acarretam a discriminação ou a supressão das liberdades individuais no interior destes grupos? Através de uma apreciação comunitária dos fatos, somos levados a admitir que os diversos aspectos de nossa cultura de origem fornecem os meios necessários para a formação de um “eu” consciente. Sem os elementos culturais na forma de uma linguagem com a qual trocamos experiências com os outros, não é possível edificarmos um self genuinamente humano, capaz de avaliações morais e de relações significativas com o mundo a nossa volta. No entanto, existem grupos cujas tradições possuem traços patriarcais fortemente enraizados, os quais levam os integrantes homens a compreender depreciativamente o papel das mulheres dentro do grupo. Em muitas tradições, as mulheres sofrem desde restrições à possibilidade de deliberar sobre algo dentro do grupo, até agressões físicas e mutilações que são “culturalmente” aceitas pela maioria dos membros destes grupos. Homossexuais e ateus também podem sofrer punições de uma maioria religiosa devido às suas orientações e preferências pessoais.
             A discriminação intra-grupo é um problema porque as práticas discriminatórias destes grupos entram em conflito com alguns dos valores essenciais das democracias ocidentais que versam acerca dos direitos individuais e dos direitos humanos universais. Não existe uma solução fácil porque não podemos simplesmente nos valer dos princípios que, dentro da nossa sociedade, são vistos como “absolutamente” coerentes para assim rejeitar as práticas de algumas culturas, taxando-as de primitivas ou irracionais. O âmbito da “igualdade” que acreditamos ser desejável universalmente, em muitos casos, não pode ser totalmente apreciado (compreendido) por aqueles indivíduos que, ao longo de suas vidas, não partilharam de experiências sociais nas quais tal princípio vigorou. 
Desse modo, creio que o diálogo intercultural e uma educação multicultural podem fornecer meios para melhorar as situações mais complicadas. Uma sociedade plural e diversificada culturalmente não pode abdicar de projetos educacionais e de interação social que permitam uma maior aproximação entre grupos diferenciados, valorizando a troca de experiências e a possibilidade de ampliação de nosso espectro moral/conceitual, ou, como prefere Taylor, do alargamento de nossos “horizontes de significado”.     
    Atualmente presenciamos o ressurgimento de ideias politicamente obscuras, as quais ameaçam os valores democráticos não só de nosso país, mas também de outras nações do Ocidente. O espírito nacionalista e extremista que descaradamente ostenta o desprezo por minorias culturais e por outros grupos marginalizados vem ganhando popularidade e força (principalmente através da mídia e das redes sociais digitais), buscando ofuscar os valores de igualdade e liberdade em nossa sociedade. Diante disso, acredito que questões em torno do multiculturalismo e da convivência em uma sociedade diversificada precisam ganhar mais centralidade. Não é preciso que um grupo se feche em si mesmo para preservar suas tradições, tampouco é necessário que todos abracem um ideal monocultural sustentado pelo mercado capitalista. Mas precisamos de uma maior abertura à realidade do “outro” diferente, sem a arrogante superioridade daquele que se disponibiliza para a ascensão a um novo grau de moralidade, mas simplesmente aberto ao aprendizado intercultural. Sobre isso, sustento que é fundamentalmente por meio da convivência que podemos tanto aprender como ensinar formas de ver o mundo e de ver a nós mesmos, criando sempre novas dimensões de valoração.  
Referências
APPIAH, K. A. “Identity, Authenticity, Survival: multicultural societies and social reproduction” In: GUTMAN, Amy (Org.). Multiculturalism: examining the politics of recognition. Princeton: Princeton University Press, 1994, p. 151.
BARRY, B. Culture and Equality: An Egalitarian Critique of Multiculturalism, Cambridge, MA: Harvard, 2001, p. 34.

TAYLOR, C. “The politics of recognition” In: GUTMAN, Amy (Org.). Multiculturalism: examining the politics of recognition. Princeton: Princeton University Press, 1994.